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Anna e Fernando
(Cuidador familiar)

O meu nome é Fernando, tenho sessenta e quatro anos e sou cuidador.

O meu nome é Fernando, tenho sessenta e quatro anos e sou cuidador.

A Ana tem sessenta e um anos. Há seis diagnosticaram-lhe Alzheimer. Trabalhava numa companhia de seguros. Um dia chegou a casa e disse que lhe custava fazer certas tarefas, que não se concentrava. Começou a sentir-se insegura. Pedia ajuda aos colegas e acabava por se pôr nervosa. Mais tarde, numa visita ao Porto, estacou de repente, olhou para mim e disse: "Fernando, não sei onde está o carro". Aquilo fez disparar todos os sinais de alarme.

Na altura falámos com um amigo geriatra que nos recomendou ir ao médico. Ao fim de vinte minutos tínhamos um diagnóstico. Foi uma situação muito violenta. Quando saímos do consultório sentámo-nos numa esplanada para tomar uma bica, abraçámo-nos e chorámos muito. Naquele instante decidimos que íamos enfrentar o que viesse com mentalidade positiva, com o afeto que nos une, sem segredos, falando de tudo e juntos. Sempre juntos.

É nessa altura que a gente percebe que a vida está prestes a mudar. A vida da pessoa doente muda radicalmente, mas a nossa também.

Com sessenta e um anos continuava trabalhar, mas a minha mulher precisava de mim. Numa época de crise económica e cortes, demiti-me da empresa de consultoria onde trabalhava. A partir desse dia, passei a ser oficialmente um cuidador.

Foi nesse momento que percebi que não sabia nada de nada. Que não estava preparado para o que ia acontecer porque não sabia o que ia acontecer. Precisava de informação. Liguei o computador e li muito. Li tudo. Li até os olhos me doerem ou até não poderem conter as lágrimas.

E através da leitura encontrei ajuda, como a da Associação Portuguesa de Familiares e Amigos dos Doentes de Alzheimer, que nos tem acompanhado na nossa aprendizagem sobre a doença. Encontrei ajuda para a Ana, mas também para mim. Apoio, conforto e muita informação. Psicólogos que nos orientam. Porque se não tivermos uma âncora a que poder agarrar-nos com força, esta doença dá cabo de nós.

A Ana foi declarada dependente em grau moderado, se bem que na verdade é uma grande dependente. As palavras estão todas na cabeça dela, mas desaparecem quando chegam à boca. Ela vê os objetos mas não consegue reconhecê-los. Tem problemas com a perceção do espaço. Antes podia vestir-se sozinha, mas agora já não. Tenho de ajudá-la. Com um pouco de bom humor, lá vamos encarando os dias como podemos.

Felizmente, contamos com uma rede de apoio muito ampla. Temos três grandes grupos de amigos com os que estamos sempre a fazer coisas. Continuamos a viajar, de vez em quando vamos jantar fora, tentamos permanecer ativos na medida do possível. Também nos damos com outros casais que vão ao centro de dia e que estão na mesma situação que nós. Apoiamo-nos mutuamente e falamos muito "do que está por vir". Eles já passaram por aquilo que eu estou a viver agora.

E depois temos os nossos filhos, é claro. Dois filhos e dois netos. Mas eles têm a sua vida. Às vezes vêm a casa e passam um bocadinho com a mãe para eu poder sair e fazer coisas, mas prefiro sair com ela. Enquanto a Ana puder, vamos juntos para todo o lado.

O centro de dia é uma grande ajuda. Uma válvula de escape. Para ela e para mim. Liberta-me durante o tempo necessário para tratar da casa, fazer compras, ir ao médico. Eu tenho problemas de coluna, e isso dá-me muito medo. Receio o que possa vir a acontecer se algum dia não puder cuidar da Ana, não sei como é que havemos de fazer. Esse pensamento é aterrador.

O meu mecanismo de defesa para enfrentar cada dia é pensar que tudo continua na mesma, com a pequena diferença de que agora a Ana precisa de mais ajuda. A mesma ajuda que ela sempre prestou aos outros ao longo da vida. Era muito nova quando perdeu a mãe e teve de tomar conta do pai e dos irmãos mais novos. Trabalhava fora de casa e cuidava de sete pessoas. Por isso ela agora recebe tanto, porque também deu muito.

A parte mais triste para ela é não poder comunicar-se com os outros. E não poder ler. Sempre foi uma pessoa extrovertida que falava com toda a gente, e devorava livros. Isso dá-lhe raiva e muita pena.

Eu e a Ana amamo-nos muito, e isso nunca irá mudar. Estamos juntos desde que eu tinha dezoito anos. Conheci-a num jogo de rugby. Ela tinha ido acompanhar uma amiga que estava interessada noutro rapaz, e uma coisa levou à outra. Até hoje.

O que se passa é que a nossa vida agora é diferente. Todos os dias, quando me levanto, é como se me preparasse para representar um papel. Sou ator de teatro. Por dentro sinto uma angústia imensa, mas tenho sempre um sorriso nos lábios. Vamos lá outra vez, outro dia. Quando cai a noite é que começo a dar voltas a tudo, e então choro. Umas vezes sozinho, outras vezes choramos os dois juntos.

Eu vou continuar a cuidar da Ana enquanto puder, ou até que ela não me reconheça. Então será o momento de a levar para um lar.

Dizem que a música é uma das últimas gavetinhas que se fecha. Até lá, nós vamos continuar a cantar e a dançar.

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